UMA LIÇÃO DE RUI


Esta quem conta é Rui Barbosa. Guilherme I, o Conquistador, também dito o Bastardo (1027-1087), depois de invadir e atravessar a Normandia, talando roças, arrancando vinhedos, cortando pomares, incendiando vilas e cidades, caiu ferido nas ruas de Nantes. Nantes é hoje perfeito exemplo daquilo que os guias turísticos chamam de cidade aprazível. Lôbrega nas noites de inverno, sorri nas manhãs de primavera. Difícil imaginá-la palco da ferocidade humana, abrasada em chamas.
Guilherme exalou o último suspiro no mosteiro de Saint-Gervais. Seu cadáver foi abandonado pela nobreza e pelo clero, no meio das cenas de pilhagem que se seguiram. Só em um fidalgo normando encontrou mãos piedosas. Este anônimo o transportou para a abadia de Saint-Étienne, erigida pelo próprio morto, anos antes, em Caen. Lá, ainda hoje, debaixo de uma lápide negra, dormem os restos do terrível Conquistador ou Bastardo.
Mas, antes de se recolher à derradeira jazida, quando lhe abriam, entre o coro e o altar, a cova em que ia baixar o féretro, um caso estranho e insólito deteve a santa cerimônia, enchendo os circunstantes de assombro. Um homem se adiantou à turba dos fiéis: “Haro!” – ouviu-se o brado legal de apelo à justiça e à lei, o “aqui del-rei” daquele tempo. Tomados, assim, de sobressalto, ficaram todos. Encaravam o intruso. Era Ascelino, filho de Arthur, modesto sujeito da região, figurinha fácil nas feiras e tascas.
“Clérigos e bispos!”, clamou Ascelino. “O chão em que estais era o sítio da casa de meu pai. O homem por quem fazeis prece o tomou à força da minha família, quando simples duque da Normandia. Fez isso com a afronta de toda a justiça, por um ato do poderio tirânico. Depois é que fundou esta abadia. Eu não vendi o terreno, não o empenhei, também não o perdi por sentença, nem o doei. Reclamo, pois, este terreno. Demando a sua restituição. E, em nome de Deus, proíbo que o corpo do esbulhador se cubra com a gleba da minha propriedade, que durma na herança dos meus pais".
Os assistentes conheciam Ascelino, filho de Arthur. Sabiam do fato e apoiaram com o seu testemunho os embargos do prejudicado. Enquanto isso, o ataúde régio aguardava a decisão do litígio. Àquela altura o Conquistador já estaria fedendo. Antes que a terra recebesse seu hóspede, os prelados tiveram de reembolsar ao dono da terra o valor do sítio ocupado pelo jazigo. E combinar, ali mesmo, com Ascelino, o montante da indenidade pelo solo onde se havia construído o templo. Só então suspendeu o pleiteante seu impedimento. E o corpo do soberano desceu, enfim, ao sarcófago, que o esperava.
Aos que não sabem o que é justiça, Rui mandava pôr os olhos neste espetáculo medieval. As potestades humanas e divinas, o templo, a morte, os próprios funerais dos senhores do mundo – nada se opõe a que ela se exerça, e domine, e triunfe.

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